Jogos digitais e Violência – de novo?

Meme: Keep calm and corra para as montanhas

E novamente vamos lá, para mais um momento em que um político fala sobre algo que não entende. Até aí, nada de novo no front. Só que se trata do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, que essa semana resolveu fazer um pequeno, raso, desastroso e pernicioso discurso tentando associar os jogos digitais, ou jogos eletrônicos, ou games, ou videogames, como queira, à violência. Para quem não sabe do que estou falando, foi durante uma reunião realizada no Palácio do Planalto em 18/04/2023 sobre ações integradas de proteção nas escolas. O trecho em questão começa em 2:29:29, mas você pode conferir o vídeo completo se quiser.

Esse não é o primeiro e nem o último ataque que os jogos digitais sofrem e a discussão sobre os impactos de jogos que contém violência no comportamento humano não é nova. Estima-se que na década de 1970 um jogo chamado Death Race, que teria sido baseado no filme Death Race 2000 (1975), tenha sido o estopim (no pun intended) da polêmica. Os desenvolvedores do jogo negam o vínculo com o filme, mas isso não é o cerne da questão.

Ao longo dessas décadas, em vários momentos e lugares tem sido possível observar manifestações contrárias aos jogos digitais, tentando associá-los a comportamentos violentos. No Brasil, lembro-me de um projeto de lei (PLS 170/2006) do então senador Valdir Raupp (RO), que tinha como objetivo classificar como crime “o ato de fabricar, importar, distribuir, manter em depósito ou comercializar jogos de videogames ofensivos aos costumes, às tradições dos povos, aos seus cultos, credos, religiões e símbolos”. Houve muita movimentação por parte de desenvolvedores e acadêmicos ligados à indústria brasileira de jogos digitais, o que contribuiu para que o senador pedisse o arquivamento do projeto. Aqui você pode ler um pouco a respeito da iniciativa e aqui uma ótima matéria sobre a desistência do senador, com diversas outras informações a respeito do episódio.

Em maio de 2013, o então deputado federal Jair Bolsonaro (RJ), em uma participação no programa Mulheres, da TV Gazeta (SP), gravado em 24/05 daquele ano, referiu-se aos jogos digitais como “um crime”, dizendo que “precisa coibir” e que “não aprende nada”. Fica aqui o link para o vídeo completo para que você extraia suas próprias conclusões, sendo que a fala começa entre 18:34 e 18:35. Uma matéria da coluna Start no portal UOL abordou bem o episódio, inclusive com a réplica do também deputado Eduardo Bolsonaro, filho de Jair Bolsonaro.

Já em janeiro de 2016, o ministro da Justiça José Eduardo Cardozo, que participava de evento na Organização dos Estados Americanos (OEA) apresentando um pacto nacional criado pelo governo federal para diminuição dos homicídios no Brasil, deu sua contribuição ao rol de declarações associando jogos digitais à violência, o que também repercutiu na mídia brasileira, como por exemplo nesta matéria do Olhar Digital, essa outra do The Enemy e essa do Drops de Jogos, que tece diversas considerações sobre outro episódio lamentável quando Martha Suplicy, ministra da Cultura, declarou que “games não são cultura” e não valiam para o Vale Cultura.

E, mais recentemente, na esteira da comoção causada pela matança na escola Professor Raul Brasil, em Suzano (SP) ocorrida em 13/03/2019, o ex-Vice-Presidente da República Hamilton Mourão foi mais um dos que deu sua opinião sobre aquilo que não conhece, novamente no sentido de associar jogos digitais à violência. Isso também repercutiu na mídia e aqui destaco algumas matérias do Correio Braziliense, que inclusive traz a reação da comunidade ligada aos jogos digitais, do Tecmundo e no R7.

Em todos esses infelizes episódios, assim como no atual, houve muita repercussão junto a toda a indústria brasileira de jogos digitais, que inclui o público consumidor, mas muitos profissionais do meio empresarial e do meio acadêmico, que trabalham no desenvolvimento de jogos digitais, na formação de profissionais para o setor e no desenvolvimento de pesquisas científicas sobre os jogos digitais, inclusive estudando a relação entre jogos digitais e violência.

Então passamos a falar de Ciência, algo que foi colocado à exaustão durante os últimos anos. Há décadas, pesquisadores vêm se debruçando sobre o tema em instituições de ensino e pesquisa ao redor do mundo, gerando artigos científicos, dissertações, teses, relatórios e livros. Os resultados dessas pesquisas são apresentados em simpósios, congressos e outros eventos acadêmicos ou não realizados todos os anos em diversos países.

Nesse sentido e abrindo um parêntese providencial, quero destacar o importante papel que tem tido o SBGames, evento que realizou sua 20ª edição em 2021 e reúne anualmente professores, pesquisadores e outros profissionais da indústria para discutir e apresentar resultados de pesquisas acadêmicas e da produção brasileira de jogos. Entre as várias pesquisas apresentadas, existe toda uma gama de trabalhos na trilha de Educação que vem mostrando há anos o trabalho desenvolvido em diversas instituições brasileiras de ensino e pesquisa, com diversas experiências exitosas na aplicação de jogos na educação.

O fato é que, até o momento, e digo isso pois a Ciência vive de questionar a si própria, questionar os resultados obtidos em pesquisas e produzindo conhecimento a partir de novas pesquisas, não se encontra uma relação de causa e efeito que possa ser comprovada entre jogar jogos violentos e praticar violência “na vida real”.

O que se percebe, por outro lado, são os vários benefícios que os jogos digitais trazem às pessoas nos mais diversos campos, como por exemplo o estímulo à criatividade, resolução de problemas, aprimoramento de reflexos e da coordenação motora, a compreensão e o respeito a regras e também a socialização, sendo claro que isso atinge pessoas de diferentes idades. Inclusive é interessante citar o crescimento da adesão de idosos aos jogos digitais, como destacado em matérias do Olhar Digital, da Exame e do MeuPlayStation.

A violência é um problema complexo e que possui diversas causas de ordem econômica, social e de saúde. É extremamente raso atribuir a apenas um fator, no caso os jogos digitais, um poder de influência sobre o comportamento, fazendo com que pessoas passem a agir violentamente por terem jogado jogos violentos. Fazendo um paralelo em tom de piada, muito comum na comunidade gamer, seria o equivalente a alguém se tornar encanador por ter jogado muitos jogos do Mário, ou ter ficado rico ao jogar uma versão digital do Banco Imobiliário.

Quando autoridades como todas as citadas e outras fazem declarações apontando supostos perigos dos jogos digitais, todo o trabalho de uma indústria que vem lutando para crescer há vários anos, gerando postos de trabalho, conhecimento e formação é colocado em xeque. A falta de informação e os achismos permitem o florescimento do preconceito, da depreciação pura e simples do trabalho de desenvolvedores, pesquisadores e professores, entre outros profissionais, que atuam em diversas frentes todos os dias para produzir jogos como Dandara, Unsighted, Arida: Backland’s Awakening, Hazel Sky, só para citar alguns, ou para capacitar pessoas que possam trabalhar nos mais de 1000 estúdios brasileiros, como mostra a Pesquisa da indústria brasileira de games, relatório publicado em 2022 pela Abragames, associação brasileira de empresas do setor, ou abrir seu próprio estúdio.

Existem muitos profissionais no Brasil capacitados, tanto no âmbito empresarial como no acadêmico, para tratar do assunto e a quem as autoridades podem recorrer para obter informações de forma a evitar declarações potencialmente danosas, como essa última do Presidente da República, sobre o que tanto se falou nessa última semana.

Caso queira conhecer uma carta aberta, escrita por um coletivo de pesquisadores, coordenadores de curso e professores de cursos de Jogos Digitais e áreas afins, bem coo desenvolvedores, acesse por este link. Outras pessoas e entidades se mobilizaram e produziram cartas e outras formas de manifestação. Eu mesmo gravei um vídeo a respeito, que pode ser assistido aqui.

Brasil, 523 anos

Mapa do Brasil

Hoje comemoramos os 523 anos do descobrimento do Brasil, um país tão rico em vários aspectos e tão pobre em outros, como por exemplo nas condições de vida de boa parte de sua população e no uso que se faz da arrecadação de impostos, taxas e contribuições, embora para essa última o Estado brasileiro funcione como uma máquina de precisão.

Ouço desde criança que o Brasil é o país do futuro, só que esse futuro parece nunca chegar. É claro que houve avanços em vários campos, mas muito ainda há o que fazer e isso passa por questões para as quais os ocupantes dos Três Poderes precisariam direcionar mais atenção e não é estranho questionar até que ponto estão realmente interessados nisso. Saúde e Educação, para começar.

Que o futuro reserve a quem estiver nele um Brasil melhor, onde se possa pelo menos viver razoavelmente bem, onde todas as pessoas tenham o que comer e onde morar, onde haja um sistema público de Saúde que consiga realmente atender às necessidades de quem precisa e onde haja serviços privados de Saúde para quem quiser deles usufruir; onde se possa ter uma Educação pública, gratuita e de qualidade, mas também possa ter Educação privada de qualidade para quem quiser dela desfrutar; onde se possa buscar emprego e onde se possa empreender; onde se possa sair de casa com maior tranquilidade, sem a preocupação de eventualmente não conseguir voltar vivo no fim do dia; onde a criminalidade seja combatida com meios justos e eficientes e a impunidade não seja uma constante, onde a corrupção e os desmandos sejam cada vez menos presentes.

Esses são apenas alguns desejos que acredito compartilhar com muitas outras pessoas de todas as idades, etnias e de tantas outras características que fazem o Brasil ser um dos países com maior diversidade no planeta e que pode usar essa diversidade a nosso favor, crescendo e ao mesmo tempo trazendo à sua população a certeza de que aqui pode ser o melhor lugar para se viver.

Finalmente, para não deixar a tradição de lado, fica aqui meu Huhu! para o aniversariante.